sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Das múltiplas dimensões da razão privilegiou-se uma, a instrumental-analítica, razão tecnológica com a qual se conseguiu em parte o domínio do mundo, a construção da máquina de morte que pode exterminar várias vezes a biosfera, e conseguiu também criar a penicilina e chegar à Lua.

Mas esse tipo utilitário de razão cobrou um preço excessivo, Ocasionou uma espécie de cegueira, verdadeira lobotomia do espírito humano, que ficou insensível à mensagem da beleza e da grandeza do universo. Fez-se cego ao mistério do real, colocando sob suspeita a emoção, o afeto e a ternura sob o pretexto de que impedem um conhecimento objetivo da realidade.

O efeito dessa lesão visual-intelectual foi separar ciência de religião, economia de política, política de ética e ética de espiritualidade. Dilacerou-se a unidade da experiência humana. O resultado é uma espantosa falta de cuidado com a natureza, com o ser humano na integralidade de suas dimensões, com os milhares de pessoas que vivem num nível abaixo da sobrevivência e em condições que atentam contra a dignidade humana. O crescente fosso entre ricos e pobres provoca cada vez menos indignação ética.

Leonardo Boff, A oração de São Francisco

sábado, 16 de novembro de 2013

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Considera com indulgência os que bebem até a embriaguez.
Lembra-te de que tens defeitos maiores.
Se queres conhecer a paz e a serenidade, pensa
nos miseráveis que padecem os piores infortúnios e... acabarás por julgar-te feliz.

Omar Khayyam, Rubaiyat
(trad. indireta Octávio Tarquínio de Sousa)

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

O poeta não merece este nome enquanto falar de seus poucos sentimentos subjetivos; mas assim que puder se apropriar do mundo e expressá-lo, será um poeta. Então será inexaurível, e poderá sempre se renovar, enquanto uma natureza subjetiva logo expõe seu pouco material interno, sendo finalmente arruinada pelos maneirismos. As pessoas falam em estudar os antigos; mas que significa isso, senão que você deve voltar sua atenção para o mundo real e tentar expressá-lo? Era isto que os antigos faziam.

J. W. Goethe via J. P. Eckermann, Conversações com Eckermann
(trad. Luíza Lobo)

sexta-feira, 31 de maio de 2013

A vontade de poder e de dominação é o projeto antropológico em vigor desde o neolítico. Ele ganhou sua expressão clássica no antropocentrismo que marcou toda a trajetória cultural a partir de então. Assujeitar a Terra, aproveitar-se de seus recursos, ignorar a autonomia dos demais seres vivos e inertes, conquistar outros povos e submetê-los para construir prosperidade: eis o sonho maior que mobilizou desde sempre aquela porção da humanidade, detentora dos meios de poder, de ter, de saber.

Leonardo Boff, O despertar da águia

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Que mais direi? Primeiro nós nos juntamos numa casa e depois no espírito. Assim, como desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios dos que para os livros e mais frequentemente o amor se refletia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto. E para que não despertássemos suspeitas, o amor de vez em quando vibrava alguns golpes, não a cólera, não o ódio, mas o encantamento; golpes que ultrapassavam a suavidade de todos os bálsamos. Em suma, o que direi? Nenhum grau do amor foi omitido por nós dois apaixonados, e tudo o que o amor pôde imaginar de insólito foi acrescentado e, quanto menos tínhamos experiência dessas alegrias, tanto mais ardentemente nelas nos demorávamos e tanto menos nos cansávamos disso.

Pedro Abelardo, A história das minhas calamidades
(trad. Ruy Afonso da Costa Nunes)

segunda-feira, 11 de março de 2013

O amor nasce, pois, da representação e do conhecimento que temos de uma coisa e, conforme a coisa se mostre maior e magnífica, maior é também o amor em nós.

Baruch Spinoza, (Breve) Tratado de Deus, do Homem e de sua Felicidade
(trad. Jacó Guinsburg e Newton Cunha)

domingo, 13 de janeiro de 2013

Às vezes me pergunto por que os homens não são feitos de pedra. Somos de água, e nossa forma, que nunca é nossa, assume linhas exóticas de tristes cântaros, de jarros alegres ou de tanques sinistramente cúbicos. Os continentes tirânicos nos modelam com raras elegâncias de manhã, e à noite já nos deformam.

Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Do corcel as feições são naturais,
pois uma égua o concebeu dum grifo;
penas e asas ao pai tinham iguais,
membros anteriores, cabeça e grifo;
no resto do corpo imitava mais
a mãe, e era o seu nome hipogrifo;
raros, nos montes Rifeus são criados,
que ficam muito além dos mares gelados.

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Margarida Periquito)
Não é o corcel miragem, mas real:
Uma jumenta o concebeu de um grifo.
Em cabeça, asas, cara ao pai é igual
E em pluma e pés frontais, que formam grifo.
Noutros membros parece tal e qual
A mãe, e leva o nome de hipogrifo.
Só nasce muito além do mar de gelo
Lá nos montes Rifeus, mas raro é vê-lo.

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Pedro Garcez Ghirardi)
Non è finto il destrier, ma naturale,
ch'una giumenta generò un grifo:
simile al padre avea la piuma e l'ale,
li piedi anteriori, il capo i il grifo;
in tutte l'altre membra parea quale
era la madre, i chiamasi ippogrifo;
che nei monti Rifei vengon, ma rari,
molto di là dagli aghiacciati mari

Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.

domingo, 6 de janeiro de 2013

"Tenha a bondade, meu senhor, de examinar e testar essa bolsa." Enfiou a mão no bolso da casaca e, puxando por dois fortes cordões de couro, tirou um saco de marroquim resistente, de tamanho médio, bem costurado, e entregou-o a mim. Enfiei a mão e tirei de lá dez moedas de ouro, e mais dez, e mais dez, estendi-lhe rapidamente a mão: "Feito! Negócio fechado! Em troca da bolsa, pode levar minha sombra." Ele apertou minha mão, ajoelhou-se resoluto à minha frente e vi como ele, com admirável habilidade, foi desprendendo suavemente minha sombra da relva, começando pela cabeça e indo até os pés; e, por fim, depois de enrolá-la e dobrá-la toda, guardou-a mais uma vez diante de mim e retirou-se indo em direção das roseiras. A mim pareceu tê-lo ouvido rir baixinho, de si para si. Eu, todavia, segurava firmemente a bolsa pelos seus cordões; ao meu redor a terra estava toda ensolarada e eu ainda não tinha noção de nada.

Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl
(trad. Marcus Vinicius Mazzari)


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

[...] minha própria existência, que ainda não consegui justificar. Mais do que isso: ainda não a pude constatar. E mesmo que algum dia eu a possa sentir e positivar, é fora de dúvida que nunca a poderei demonstrar. O que, de resto, pouco adiantaria. Por enquanto, ora a coloco num estado germinal, ideia preparatória de algum plano que virá a ser, situação provisória de um fantasma interino -- ora a coloco melancolicamente, na foz de um rio que dentro de alguns metros já não existirá, desmanchado no abismo do mar. Muitos acharão isso estranho e pensarão que ando entregue a fantasias especiosas. Mas creio que ninguém pensa de maneira contrária, pois a verdade é que nunca pensaram sobre isso, o que afinal é uma leviandade sem perdão. Não encontro ninguém para falar de tais negócios, e sou obrigado a recorrer a velhos livros, e encontro todos, poetas e profetas, perplexos da mesma angústia.

Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas