Das múltiplas dimensões da razão privilegiou-se uma, a instrumental-analítica, razão tecnológica com a qual se conseguiu em parte o domínio do mundo, a construção da máquina de morte que pode exterminar várias vezes a biosfera, e conseguiu também criar a penicilina e chegar à Lua.
Mas esse tipo utilitário de razão cobrou um preço excessivo, Ocasionou uma espécie de cegueira, verdadeira lobotomia do espírito humano, que ficou insensível à mensagem da beleza e da grandeza do universo. Fez-se cego ao mistério do real, colocando sob suspeita a emoção, o afeto e a ternura sob o pretexto de que impedem um conhecimento objetivo da realidade.
O efeito dessa lesão visual-intelectual foi separar ciência de religião, economia de política, política de ética e ética de espiritualidade. Dilacerou-se a unidade da experiência humana. O resultado é uma espantosa falta de cuidado com a natureza, com o ser humano na integralidade de suas dimensões, com os milhares de pessoas que vivem num nível abaixo da sobrevivência e em condições que atentam contra a dignidade humana. O crescente fosso entre ricos e pobres provoca cada vez menos indignação ética.
Leonardo Boff, A oração de São Francisco
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
sábado, 16 de novembro de 2013
sexta-feira, 13 de setembro de 2013
O poeta não merece este nome enquanto falar de seus poucos sentimentos subjetivos; mas assim que puder se apropriar do mundo e expressá-lo, será um poeta. Então será inexaurível, e poderá sempre se renovar, enquanto uma natureza subjetiva logo expõe seu pouco material interno, sendo finalmente arruinada pelos maneirismos. As pessoas falam em estudar os antigos; mas que significa isso, senão que você deve voltar sua atenção para o mundo real e tentar expressá-lo? Era isto que os antigos faziam.
J. W. Goethe via J. P. Eckermann, Conversações com Eckermann
(trad. Luíza Lobo)
J. W. Goethe via J. P. Eckermann, Conversações com Eckermann
(trad. Luíza Lobo)
sexta-feira, 31 de maio de 2013
A vontade de poder e de dominação é o projeto antropológico em vigor desde o neolítico. Ele ganhou sua expressão clássica no antropocentrismo que marcou toda a trajetória cultural a partir de então. Assujeitar a Terra, aproveitar-se de seus recursos, ignorar a autonomia dos demais seres vivos e inertes, conquistar outros povos e submetê-los para construir prosperidade: eis o sonho maior que mobilizou desde sempre aquela porção da humanidade, detentora dos meios de poder, de ter, de saber.
Leonardo Boff, O despertar da águia
Leonardo Boff, O despertar da águia
quarta-feira, 29 de maio de 2013
Que mais direi? Primeiro nós nos juntamos numa casa e depois no espírito. Assim, como desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da lição, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios dos que para os livros e mais frequentemente o amor se refletia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto. E para que não despertássemos suspeitas, o amor de vez em quando vibrava alguns golpes, não a cólera, não o ódio, mas o encantamento; golpes que ultrapassavam a suavidade de todos os bálsamos. Em suma, o que direi? Nenhum grau do amor foi omitido por nós dois apaixonados, e tudo o que o amor pôde imaginar de insólito foi acrescentado e, quanto menos tínhamos experiência dessas alegrias, tanto mais ardentemente nelas nos demorávamos e tanto menos nos cansávamos disso.
Pedro Abelardo, A história das minhas calamidades
(trad. Ruy Afonso da Costa Nunes)
Pedro Abelardo, A história das minhas calamidades
(trad. Ruy Afonso da Costa Nunes)
segunda-feira, 11 de março de 2013
domingo, 13 de janeiro de 2013
Às vezes me pergunto por que os homens não são feitos de pedra. Somos de água, e nossa forma, que nunca é nossa, assume linhas exóticas de tristes cântaros, de jarros alegres ou de tanques sinistramente cúbicos. Os continentes tirânicos nos modelam com raras elegâncias de manhã, e à noite já nos deformam.
Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas
Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
Do corcel as feições são naturais,
pois uma égua o concebeu dum grifo;
penas e asas ao pai tinham iguais,
membros anteriores, cabeça e grifo;
no resto do corpo imitava mais
a mãe, e era o seu nome hipogrifo;
raros, nos montes Rifeus são criados,
que ficam muito além dos mares gelados.
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Margarida Periquito)
pois uma égua o concebeu dum grifo;
penas e asas ao pai tinham iguais,
membros anteriores, cabeça e grifo;
no resto do corpo imitava mais
a mãe, e era o seu nome hipogrifo;
raros, nos montes Rifeus são criados,
que ficam muito além dos mares gelados.
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Margarida Periquito)
Não é o corcel miragem, mas real:
Uma jumenta o concebeu de um grifo.
Em cabeça, asas, cara ao pai é igual
E em pluma e pés frontais, que formam grifo.
Noutros membros parece tal e qual
A mãe, e leva o nome de hipogrifo.
Só nasce muito além do mar de gelo
Lá nos montes Rifeus, mas raro é vê-lo.
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Pedro Garcez Ghirardi)
Uma jumenta o concebeu de um grifo.
Em cabeça, asas, cara ao pai é igual
E em pluma e pés frontais, que formam grifo.
Noutros membros parece tal e qual
A mãe, e leva o nome de hipogrifo.
Só nasce muito além do mar de gelo
Lá nos montes Rifeus, mas raro é vê-lo.
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
(trad. Pedro Garcez Ghirardi)
Non è finto il destrier, ma naturale,
ch'una giumenta generò un grifo:
simile al padre avea la piuma e l'ale,
li piedi anteriori, il capo i il grifo;
in tutte l'altre membra parea quale
era la madre, i chiamasi ippogrifo;
che nei monti Rifei vengon, ma rari,
molto di là dagli aghiacciati mari
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
ch'una giumenta generò un grifo:
simile al padre avea la piuma e l'ale,
li piedi anteriori, il capo i il grifo;
in tutte l'altre membra parea quale
era la madre, i chiamasi ippogrifo;
che nei monti Rifei vengon, ma rari,
molto di là dagli aghiacciati mari
Ludovico Ariosto, Orlando Furioso, IV, 18.
domingo, 6 de janeiro de 2013
"Tenha a bondade, meu senhor, de examinar e testar essa bolsa." Enfiou a mão no bolso da casaca e, puxando por dois fortes cordões de couro, tirou um saco de marroquim resistente, de tamanho médio, bem costurado, e entregou-o a mim. Enfiei a mão e tirei de lá dez moedas de ouro, e mais dez, e mais dez, estendi-lhe rapidamente a mão: "Feito! Negócio fechado! Em troca da bolsa, pode levar minha sombra." Ele apertou minha mão, ajoelhou-se resoluto à minha frente e vi como ele, com admirável habilidade, foi desprendendo suavemente minha sombra da relva, começando pela cabeça e indo até os pés; e, por fim, depois de enrolá-la e dobrá-la toda, guardou-a mais uma vez diante de mim e retirou-se indo em direção das roseiras. A mim pareceu tê-lo ouvido rir baixinho, de si para si. Eu, todavia, segurava firmemente a bolsa pelos seus cordões; ao meu redor a terra estava toda ensolarada e eu ainda não tinha noção de nada.
Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl
(trad. Marcus Vinicius Mazzari)
Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl
(trad. Marcus Vinicius Mazzari)
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
[...] minha própria existência, que ainda não consegui justificar. Mais do que isso: ainda não a pude constatar. E mesmo que algum dia eu a possa sentir e positivar, é fora de dúvida que nunca a poderei demonstrar. O que, de resto, pouco adiantaria. Por enquanto, ora a coloco num estado germinal, ideia preparatória de algum plano que virá a ser, situação provisória de um fantasma interino -- ora a coloco melancolicamente, na foz de um rio que dentro de alguns metros já não existirá, desmanchado no abismo do mar. Muitos acharão isso estranho e pensarão que ando entregue a fantasias especiosas. Mas creio que ninguém pensa de maneira contrária, pois a verdade é que nunca pensaram sobre isso, o que afinal é uma leviandade sem perdão. Não encontro ninguém para falar de tais negócios, e sou obrigado a recorrer a velhos livros, e encontro todos, poetas e profetas, perplexos da mesma angústia.
Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas
Gerardo Mello Mourão, O valete de espadas
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