quinta-feira, 26 de julho de 2018

Essa fotografia que há muito conservo de Edmond Rostand (de quem não chego a ser nem leitor), ele, a mulher e dois amigos no alto de um monte ensolarado, pertence exatamente a uma ordem de impulsos obscuros que me tornaram incompetente para o mundo prático.

Paulo Mendes Campos, De um Caderno Cinzento

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Filhos da época


Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre o solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

Wisława Szymborska, Gente na Ponte
(trad. Regina Przybycien)

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Seria difícil para mim levar adiante aquilo que faço com maior prazer se não escrevesse por vezes um diário. Não que eu utilize essas anotações; elas nunca são a matéria-prima daquilo em que estou trabalhando. Porque um homem que conhece a intensidade de suas impressões; que sente cada detalhe de cada dia como se ele fosse seu único dia; que consiste – não se pode exprimir de outra forma – justamente no exagero, mas que não combate essa predisposição, pois para ele importa a ênfase, a nitidez e a concretude de todas as coisas que perfazem a vida – esse homem poderia explodir ou mesmo partir-se em pedaços se não se tranquilizasse num diário.

Elias Canetti, Diálogo com o Interlocutor Cruel
(trad. Márcio Suzuki)